Alguns versículos parecem soar
para nós como afirmações que se aplicam de forma seletiva. É como aquelas
medicações que mulheres grávidas são proibidas de tomar: se você é homem, ou é
mulher e não está grávida, não há porque se preocupar. Mas se acreditamos que
na Bíblia temos a verdade, será que é possível condicionarmos algumas passagens
como sendo aplicáveis a apenas determinadas pessoas e situações? É claro que os
textos bíblicos precisam ser lidos e compreendidos dentro de seus diversos
contextos históricos, semânticos, etc. Mas será que não temos recortado
verdades bíblicas tão simples e fáceis de serem entendidas, pegando carona nos
conceitos pós-modernistas a respeito do absoluto – “o que é verdade para você
pode não ser para mim” –, selecionando quais afirmações bíblicas fazem sentido
e quais não podem ser interpretadas de forma “radical”. Pensando nisso,
gostaria de colocar em discussão algumas passagens que podem ter tido seu significado
simples perdido em nome do “bom-senso” que pensamos ter ao dialogarmos, como
cristãos, com o mundo.
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Lucas 12:15
A vida não depende dos bens que
um homem possui. Todos nós parecemos concordar com isso. E não apenas entre
cristãos. Apesar do apelo das grandes corporações em favor do consumo, com o
apoio da mídia, ainda assim uma coisa é consenso entre [a maioria das] pessoas
religiosas e não religiosas: é correto e até nobre reconhecer que nossa
qualidade de vida depende de outros fatores que vão muito além do tamanho da
nossa casa, da quantidade de carros na garagem, etc. Com o setor de autoajuda
sendo um dos mais procurados em qualquer livraria, perceber que a verdadeira
prosperidade vai além dos bens materiais não tem sido nenhum néctar sagrado da
sabedoria.
Mas, como diz uma personagem da
minha série favorita, “o diabo está nos detalhes”.
E, nos detalhes, vamos
deixando a avareza entrar. Não temos problema em reconhecer que a ostentação
material é sinal de vazio, atitude reprovável; não temos medo de condenar personalidades
que esbanjam dinheiro como se fosse água não potável, como o boxeador Floyd
Mayweather, por exemplo. Mas qual é nossa atitude quando vamos negociar a venda
daquele móvel usado? Como temos agido em relação aos que nos devem dinheiro? E
quando o locador deseja cobrar qualquer taxa que julgamos ser responsabilidade
dele?
Vamos pensar no contexto desta
passagem em Lucas. Um jovem pede que Jesus interfira em sua negociação com seu
irmão, a respeito de uma posse, de um bem. Jesus não levanta o questionamento
se o jovem está correto ou não naquilo que está buscando resolver. Mas Jesus
aponta o perigo que está rondando e pode estar sendo subestimado: o pecado da
avareza. Reconhecemos a avareza em astros de Hollywood ou nos políticos
corruptos. Mas será que podemos enxergar a avareza no coração deste jovem, com
um pedido simples como este? Quantos pedidos parecidos não estamos levando até
Jesus? Pedidos que revelam o conteúdo de nossos corações, cheios de
preocupações com questões materiais; passageiras.
Será que podemos reconhecer a avareza em nós,
tão facilmente quanto percebemos a avareza exposta no noticiário ou no site de
fofoca? Será que eu não sou avarento só porque não esbanjo dinheiro como estas
“pessoas vazias” que estão na mídia? Com certeza a maioria dos que vão ler este
texto, assim como eu, não são considerados avarentos aos olhos do mundo. Mas
Jesus está sempre elevando o nível moral das coisas a outro patamar em sua pregação:
“cobice em seu coração e será tido por adultero”, “xingue de idiota e será tido
por assassino”. E aqui não parece ser diferente com relação à avareza:
“preocupe-se com as coisas materiais mais básicas, e não será diferente de
nenhum daqueles homens que você julga pecadores e mundanos. Você pode não ser
tão avarento quanto eles, mas quem peca precisa de mim independente de medidas
de pecado”.
Não é sábio estarmos inquietos a respeito das necessidades materiais. Não é essa a postura das ovelhas do Tão Cuidadoso Pastor, chamado Jesus.
O que deve ocupar nossa mente então? No verso 31 Jesus explica: devemos buscar o Reino de Deus, as coisas eternas. Tantas outras coisas deveriam nos preocupar. Coisas muito mais graves do que nossas necessidades materiais, a respeito das quais tanto nos inquietamos e que mesmo assim sempre são supridas. É mais importante interceder pelos que estão sofrendo muito mais do que nós. É mais importante pedirmos a Deus que nos livre da hipocrisia e do cinismo, do que pedirmos que Ele nos livre de passar fome. São a hipocrisia e o cinismo que podem nos afastar de Deus.
Na prática é difícil. Tão difícil que essa proposta de não nos preocuparmos com coisas materiais chega a ser vista como coisa de "bicho grilo", "eremita", até mesmo por cristãos. Isso é por causa de um outro pecado, chamado mundanismo (mas sobre esse a gente fala outra hora).
É difícil e até mesmo impossível cumprir os ensinamentos de Jesus, mas é por isso que Ele deu muito mais do que ensinamentos: Ele nos deu o exemplo. E mais ainda do que o ensinamento e o exemplo, Jesus nos deu Sua vida perfeita, sem mancha de pecado. Ao crermos nEle, buscarmos Sua face, Ele nos concede Seu Espírito e nos capacita a vencermos o pecado. Sem Ele não podemos alcançar nada. E com Ele podemos vencer, não só a avareza, mas todos estes males que tem muito mais a ver com coisas invisíveis do que com problemas materiais temporários. Em Cristo, podemos vencer todos estes males que, antes de enxergarmos no outro, devemos enxergar em nós mesmos. Posso não ser tão avarento quanto Floyd Mayweather, mas também carrego minha medida de avareza.