Versículos que parecem não nos atingir

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Alguns versículos parecem soar para nós como afirmações que se aplicam de forma seletiva. É como aquelas medicações que mulheres grávidas são proibidas de tomar: se você é homem, ou é mulher e não está grávida, não há porque se preocupar. Mas se acreditamos que na Bíblia temos a verdade, será que é possível condicionarmos algumas passagens como sendo aplicáveis a apenas determinadas pessoas e situações? É claro que os textos bíblicos precisam ser lidos e compreendidos dentro de seus diversos contextos históricos, semânticos, etc. Mas será que não temos recortado verdades bíblicas tão simples e fáceis de serem entendidas, pegando carona nos conceitos pós-modernistas a respeito do absoluto – “o que é verdade para você pode não ser para mim” –, selecionando quais afirmações bíblicas fazem sentido e quais não podem ser interpretadas de forma “radical”. Pensando nisso, gostaria de colocar em discussão algumas passagens que podem ter tido seu significado simples perdido em nome do “bom-senso” que pensamos ter ao dialogarmos, como cristãos, com o mundo.

--

E disse então ao povo: Guardai-vos escrupulosamente de toda a avareza, porque a vida de um homem, ainda que ele esteja na abundância, não depende de suas riquezas.
Lucas 12:15

A vida não depende dos bens que um homem possui. Todos nós parecemos concordar com isso. E não apenas entre cristãos. Apesar do apelo das grandes corporações em favor do consumo, com o apoio da mídia, ainda assim uma coisa é consenso entre [a maioria das] pessoas religiosas e não religiosas: é correto e até nobre reconhecer que nossa qualidade de vida depende de outros fatores que vão muito além do tamanho da nossa casa, da quantidade de carros na garagem, etc. Com o setor de autoajuda sendo um dos mais procurados em qualquer livraria, perceber que a verdadeira prosperidade vai além dos bens materiais não tem sido nenhum néctar sagrado da sabedoria.

Mas, como diz uma personagem da minha série favorita, “o diabo está nos detalhes”. 

E, nos detalhes, vamos deixando a avareza entrar. Não temos problema em reconhecer que a ostentação material é sinal de vazio, atitude reprovável; não temos medo de condenar personalidades que esbanjam dinheiro como se fosse água não potável, como o boxeador Floyd Mayweather, por exemplo. Mas qual é nossa atitude quando vamos negociar a venda daquele móvel usado? Como temos agido em relação aos que nos devem dinheiro? E quando o locador deseja cobrar qualquer taxa que julgamos ser responsabilidade dele?

Vamos pensar no contexto desta passagem em Lucas. Um jovem pede que Jesus interfira em sua negociação com seu irmão, a respeito de uma posse, de um bem. Jesus não levanta o questionamento se o jovem está correto ou não naquilo que está buscando resolver. Mas Jesus aponta o perigo que está rondando e pode estar sendo subestimado: o pecado da avareza. Reconhecemos a avareza em astros de Hollywood ou nos políticos corruptos. Mas será que podemos enxergar a avareza no coração deste jovem, com um pedido simples como este? Quantos pedidos parecidos não estamos levando até Jesus? Pedidos que revelam o conteúdo de nossos corações, cheios de preocupações com questões materiais; passageiras.

 Será que podemos reconhecer a avareza em nós, tão facilmente quanto percebemos a avareza exposta no noticiário ou no site de fofoca? Será que eu não sou avarento só porque não esbanjo dinheiro como estas “pessoas vazias” que estão na mídia? Com certeza a maioria dos que vão ler este texto, assim como eu, não são considerados avarentos aos olhos do mundo. Mas Jesus está sempre elevando o nível moral das coisas a outro patamar em sua pregação: “cobice em seu coração e será tido por adultero”, “xingue de idiota e será tido por assassino”. E aqui não parece ser diferente com relação à avareza: “preocupe-se com as coisas materiais mais básicas, e não será diferente de nenhum daqueles homens que você julga pecadores e mundanos. Você pode não ser tão avarento quanto eles, mas quem peca precisa de mim independente de medidas de pecado”.

             Graças a Deus que Jesus continua o assunto e no versículo 22 Ele nos ensina a partir de um esclarecedor “portanto”; ou seja, se a avareza é assim tão perigosa e sutil como ele está explicando, Ele também está pronto a nos mostrar o caminho que nos afasta deste pecado. E a partir deste “portanto” Ele nos dá um ensinamento muito precioso: 

             Não é sábio estarmos inquietos a respeito das necessidades materiais. Não é essa a postura das ovelhas do Tão Cuidadoso Pastor, chamado Jesus.

            O que deve ocupar nossa mente então? No verso 31 Jesus explica: devemos buscar o Reino de Deus, as coisas eternas. Tantas outras coisas deveriam nos preocupar. Coisas muito mais graves do que nossas necessidades materiais, a respeito das quais tanto nos inquietamos e que mesmo assim sempre são supridas. É mais importante interceder pelos que estão sofrendo muito mais do que nós. É mais importante pedirmos a Deus que nos livre da hipocrisia e do cinismo, do que pedirmos que Ele nos livre de passar fome. São a hipocrisia e o cinismo que podem nos afastar de Deus.

           Na prática é difícil. Tão difícil que essa proposta de não nos preocuparmos com coisas materiais chega a ser vista como coisa de "bicho grilo", "eremita", até mesmo por cristãos. Isso é por causa de um outro pecado, chamado mundanismo (mas sobre esse a gente fala outra hora).

          É difícil e até mesmo impossível cumprir os ensinamentos de Jesus, mas é por isso que Ele deu muito mais do que ensinamentos: Ele nos deu o exemplo. E mais ainda do que o ensinamento e o exemplo, Jesus nos deu Sua vida perfeita, sem mancha de pecado. Ao crermos nEle, buscarmos Sua face, Ele nos concede Seu Espírito e nos capacita a vencermos o pecado. Sem Ele não podemos alcançar nada. E com Ele podemos vencer, não só a avareza, mas todos estes males que tem muito mais a ver com coisas invisíveis do que com problemas materiais temporários. Em Cristo, podemos vencer todos estes males que, antes de enxergarmos no outro, devemos enxergar em nós mesmos. Posso não ser tão avarento quanto Floyd Mayweather, mas também carrego minha medida de avareza. 




0 comentários:

Postar um comentário